A OMS propõe uma economia voltada à saúde para todos

Conselho Executivo elaborou plano estratégico para colocar o cuidado com as pessoas e a natureza à frente dos lucros. Mas a falta de uma crítica às raízes do problema – e os empecilhos impostos pelo Norte Global – podem tornar a iniciativa inócua

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Por Dian Maria Blandina, no People’s Health Dispatch | Tradução: Gabriela Leite

A 154ª reunião do Conselho Executivo (EB154) da Organização Mundial da Saúde (OMS) começou em 22 de janeiro de 2024, com uma nova agenda intitulada “Economia e Saúde para Todos”. Desde então, os membros da OMS estão deliberando sobre propostas delineadas em um primeiro relatório publicado pelo Conselho da OMS sobre a Economia da Saúde para Todos, em maio de 2023.

Estabelecido no final de 2020, o conselho, liderado pela renomada economista professora Mariana Mazzucato, é composto por outras 10 mulheres economistas e especialistas em saúde, que passaram dois anos desenvolvendo um plano estratégico para priorizar a “Saúde para Todos” nas considerações econômicas. A criação deste Conselho se deve, evidentemente, à crise socioeconômica sem precedentes desencadeada pela pandemia de covid-19. Esta crise desafiou a estabilidade e a unidade globais, escancarando a ligação inseparável entre saúde e economia. Uma abordagem renovada da economia global era urgentemente necessária.

O que consta no relatório?

O relatório do Conselho enfatiza a priorização do bem-estar humano e planetário sobre o crescimento econômico, reestruturando sistemas de inovação e financiamento para um acesso equitativo à saúde, e fortalecendo a capacidade governamental para que possa oferecer cuidados de saúde de maneira eficaz. Esses são os pilares para as 13 recomendações descritas no documento, destinadas a remodelar práticas econômicas para alcançar metas universais de saúde por meio de esforços colaborativos entre setores, reconhecendo a interdependência da saúde e economia em todos os níveis. 

As treze recomendações defendem: valorizar a saúde como um investimento de longo prazo; fazer cumprir a saúde como um direito humano; priorizar a saúde planetária; adotar abordagens de financiamento estáveis; assegurar financiamento e governança adequados para a OMS; redesenhar a arquitetura financeira para equidade, usando métricas mais amplas que vão além do PIB; fomentar alianças público-privadas; projetar governança do conhecimento para acesso equitativo; alinhar a inovação com os objetivos de saúde; promover abordagens integradas de governo; investir em capacidades do setor público; e fomentar transparência e engajamento público para responsabilidade. 

Recomendações promissoras, porém faltando praticidade imediata

O lançamento do relatório foi bem-sucedido e aclamado como uma “mudança radical” no pensamento econômico. Embora ressalte a urgência de remodelar a percepção dos serviços de saúde como investimentos, e não “gastos”, ele fica aquém em explorar estratégias concretas de implementação. Reconhecendo a ligação intrincada entre atividades econômicas e resultados de saúde, o relatório defende medidas ousadas, como excluir investimentos em saúde dos déficits fiscais soberanos e suspender pagamentos de dívidas durante crises de saúde.

No entanto, ele não faz uma análise mais aprofundada das raízes das crises de saúde, desigualdade e climáticas – correndo o risco de que suas recomendações permaneçam simbólicas sem uma teoria clara de mudança. Embora proponha reformas como a regulação da propriedade intelectual, o relatório carece de estratégias acionáveis para a transformação social.

A ideia de um “Painel para uma economia saudável” sugere otimismo no uso da informação para provocar transformações, mas carece de um mecanismo real para alterar dinâmicas políticas. O relatório do Conselho, e também o da Secretaria, não aborda os obstáculos que limitam a capacidade da OMS de progredir – como as repetidas negações do mandato da OMS pelos Estados Unidos e as políticas restritivas dos países de alta renda. 

Por exemplo, na semana do lançamento do relatório do Conselho, surgiram documentos que alegam que os EUA ameaçaram reter financiamento da OMS, a menos que suas exigências sobre “destinação específica” das contribuições norte-americanas fossem integradas à decisão sobre a proposta de reabastecimento. Essa ação minou o objetivo da resolução de impulsionar a necessidade urgente da OMS por financiamento flexível, crucial para o cumprimento de seus mandatos. É necessária uma análise mais aprofundada das causas raízes das crises interconectadas, barreiras à implementação das recomendações e construção de consenso para o alívio da dívida internacional. 

Perspectivas dos Estados Membros

Durante o EB154, o relatório da Secretaria (EB154/26) estabeleceu a base para as respostas oficiais dos membros da OMS ao trabalho do Conselho. Embora muitos tenham expressado apreço pelos esforços, outros abordaram o assunto com cautela. Marrocos enfatizou a imperatividade de priorizar a justiça social. Togo elogiou o foco em aumentar a capacidade pública nas recomendações, e o Brasil pediu por mais consultas entre a OMS e seus membros. Os EUA manifestaram preocupações sobre os potenciais altos custos associados à abordagem proposta. A China aconselhou uma implementação cuidadosa para prevenir a exploração por entidades comerciais e defendeu que a OMS tenha maior consideração das sugestões do Sul Global.

Bélgica e Namíbia fizeram contribuições notáveis para a discussão. A Bélgica elogiou o relatório por desafiar a suposição de que a intervenção governamental inibe a inovação farmacêutica, enquanto o Reino Unido advertiu a OMS contra o “perigo” de que seja minado o arcabouço de direitos de propriedade intelectual. A Namíbia enfatizou a necessidade urgente de confrontar a injustiça do sistema financeiro global. Bangladesh sublinhou a necessidade de retificar o sistema econômico, que perpetua a distribuição desigual de dividendos e amplia as disparidades de saúde. A Namíbia destacou a alarmante duplicação das taxas de dívida nos países da África Subsaariana em apenas uma década, instando a OMS a engajar-se com instituições financeiras internacionais para enfrentar a crise da dívida e reforçar o financiamento da saúde.

O relatório reconhece a inevitabilidade da colaboração da OMS com instituições como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, mas ignora o histórico dessas duas entidades em não prevenir ou abordar as crises de dívida e a degradação social e ambiental resultante de seus programas de empréstimos e políticas neoliberais. Dada a improvável perspectiva de essas instituições mudarem suas práticas, é imperativo que o Conselho forneça orientações sobre como a OMS pode colaborar com instituições financeiras internacionais para alcançar seus objetivos ambiciosos sem comprometer seus princípios. 

Há alinhamento com os objetivos ambiciosos da Declaração de Alma Ata?

Em suas palavras finais, o Dr. Bruce Aylward, Diretor-Geral Assistente da OMS, enfatizou a missão do Conselho de unir economia e saúde para concretizar a saúde para todos, conforme vislumbrado na Declaração de Alma Ata. Embora o relatório do Conselho tenha representado um passo radical para a frente, ele ficou aquém da resolução ambiciosa da Assembleia Geral da ONU de 1974, referenciada na Declaração de Alma Ata, que mostrou o caminho para a saúde igualitária, e que buscava transformar fundamentalmente o status quo no sistema econômico global. 

Nela estavam contidas uma série de propostas destinadas a melhorar a posição das nações em desenvolvimento na economia global. Incluíam: conceder aos Estados controle sobre seus recursos naturais, regulamentar as corporações transnacionais, facilitar transferências de tecnologia sem condicionamentos do norte para o sul, fornecer preferências comerciais aos países do sul, e perdoar certas dívidas devidas pelos estados do sul aos contrapartes do norte.

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